In defense of the soapbox
Wednesday, August 16, 2006
  Mathematics in the making
Depois de roubar descaradamente o título do post, vamos tratar do assunto em questão.

De acordo com Slashdot a Conjectura de Poincaré foi confirmadamente provada. Quando uma coisa de tamanha importância acontece, é uma grande oportunidade para fuçarmos nas coisas que fazem o mundo "acadêmico" tick, e também, como não podia deixar de ser, uma grande oportunidade para um post gigantesco.

Caso alguém ainda não tenha sido curioso e clicado no link que vai para a wikipedia, eu vou tentar explicar um pouco a conjectura. Infelizmente, não vou poder explicar a prova, porque realmente eu não faço idéia de como ela foi desenvolvida.

Mas antes disso, vamos aproveitar o espaço para criar algum contexto sobre estes trabalhos homéricos da matemática hardcore. A introdução básica, obviamente, tem que ser o Último Teorema de Fermat. Eu não vou falar muito sobre o trabalho de Fermat aqui, porque afinal de contas, estamos falando de Henri Poincaré. O teorema de Fermat é elegantemente simples: ele diz que a equação a^x + b^x = c^x, onde a, b, c e x pertencem ao conjunto dos naturais (trocando em miúdos: a elevado a x mais b elevado a x é igual a c elevado a x, onde a, b, c, e x devem TODOS ser maiores ou iguais a 0, e não podem ser números com vírgula) não tem nenhuma solução para qualquer valor de x maior do que 2. Ou seja, se eu escrever a^3 + b^3 = c^3, eu poderei escolher _qualquer_ valor (não-trivial, ou seja, diferente de 0 e 1) para a, b e c que a igualdade não vai se manter. para a^4 + b^4 = c^4, a mesma coisa. E, para qualquer outro valor grande de x, também. É desta prova que existe aquela história que Fermat supostamente escreveu no canto da página onde ele estava trabalhando "eu encontrei uma prova realmente maravilhosa para este teorema, mas este pé de página é muito pequeno para escrevê-lo". Bom, sobre esta prova dele, o que se acredita hoje em dia é que Fermat descobriu uma prova equivocada para seu teorema. Isto porque a prova confirmadamente correta só surgiu em 1999, publicada por Andrew Wiles, e a teoria que ele desenvolveu junto com seus colaboradores é simplesmente complexa demais para ter sido descoberta "por acaso" por Fermat.

Agora, vocês podem perguntar para que serve provar um resultado tão catastroficamente abstrato (apesar de que a conjectura de Poincaré é algumas ordens de magnitude _mais_ abstrata). Basicamente, o mérito de Wiles (além de resolver um problema absurdamente difícil e eye-candy para os matemáticos) é que a teoria de curvas elípticas e outras tantas foram dramaticamente aprimoradas para se chegar a esta prova. E posteriormente, é possível que estas novas ferramentemas matemáticas possam ser utilizadas no futuro para aplicações práticas, assim como muitas coisas da matemática abstrata.

Voltando à conjectura (para quem tem curiosidade de datas, foi publicada num artigo em 1904). Dita nos termos da wikipedia, ela é definida da seguinte forma:

Every simply connected closed (i.e. compact and without boundary) 3-manifold is homeomorphic to a 3-sphere

Para sequer começar a pensar em entender alguma parte dessa frase, parace que nós vamos precisar de um dicionário totalmente novo. Então vamos por partes:

Antes de tentar traduzir o que a conjectura fala, eu vou tentar fornecer um pouco de contexto sobre a área da matemática que ela abrange.

Topologia. O termo é daqueles que soa estranhamente familiar, mas estranhamente diferente ao mesmo tempo. Nós conhecemos topografia, que trata basicamente de caracterizar as formas de relevo de determinados ambientes. Dito em termos compactos, topologia é o ramo da matemática que se preocupa em estudar a forma de objetos (objetos geométricos mesmo, nada de "entidades"), mas de maneira absurdamente abstrata. Por exemplo, o conceito de distância não existe em topologia. Por causa disso, um cubo maciço é _o mesmo_ objeto de uma esfera maciça. Uma rosquinha, por ter um furo no meio, é _o mesmo_ objeto de uma caneca (imagine que a caneca também tem um furo, no pegador). Se mesmo assim está difícil de entender, imaginem que a rosquinha é feita de argila. Pegue então uma parte da rosquinha e vá aumentando de tamanho, até formar um cilindro colado ao furo da rosquinha. Depois disso, empurre o "teto" do cilindo até formar a cavidade do copo da caneca. Assim, sem adicionar nem remover furos, e sem "rasgar" a superfície da rosquinha, nós a transformamos em uma caneca. Topologia trata mais ou menos disso, de caracterizar objetos por quantos furos eles têm, e como a superfície é "rasgada" ou não. Dessa forma, a descrição de objetos passa a ser simplesmente o conjunto contínuo (ou seja, sem granulosidade) dos pontos que constituem o objeto. E se estamos tratando somente de pontos, abstraindo a distância entre eles, mas garantindo que a conectividade entre os pontos (ou seja, se determinado ponto é vizinho de outro, esta vizinhança deve ser preservada) fica justificado nós termos a liberdade de mexer no "tamanho" do objeto, mas _não_ de criarmos furos no objeto (pois se criássemos, estaríamos violando a condição de vizinhança).

Outra abstração importante da topologia consiste no número de dimensões que ela trata. Nós estamos acostumados em pensar em geometria bidimensional (em planos cartesianos, sistemas de coordenadas e mapas) e, as vezes, em sistemas tridimensionais (como o mundo em que vivemos e etc.). A topologia trata destes espaços, mas trata também de espaços de uma única dimensão, e (os mais interessantes), de espaços com mais de três dimensões. Imaginar um espaço geométrico com mais de três dimensões é biologicamente impossível, mas entender a sua concepção abstrata é uma possibilidade.

Mais uma vez, voltando à conjectura; A conjectura de Poincaré trata de um tipo específico de esferas. Como vou mostrar aqui embaixo, cada número de dimensões (uma dimensão, duas dimensões, etc.) tem um objeto mais ou menos equivalente a uma esfera, e a conjectura trata do caso de quatro dimensões. Nós conhecemos duas entidades: os círculos e as esferas. Pensemos na definição de um círculo: "Um círculo é o conjunto de todos os pontos que estão a uma distância igual de um determinado ponto P0".

Nós chamamos esta distância de raio, e P0 de centro, só para nos situarmos. Agora, vamos ver a definição de uma esfera:

"Uma esfera é o conjunto de todos os pontos qeu estão a uma distância igual de um determinado ponto P0".

Estas duas descrições parecem estranhamente iguais. Mas nós sabemos que círculos e esferas não são as mesmas coisas! Alguém quer chutar a diferença? É bastante simples, na verdade; a diferença entre um círculo e uma esfera é a dimensão do espaço que estamos tratando. Um círculo engloba todos os pontos equidistantes de P0, _assumindo_ que nós só podemos andar em duas direções: Para os lados e para cima/baixo. Já a esfera é a mesma definição, mas nós temos um grau de liberdade a mais: podemos também andar para trás e para frente.

Agora, alguém pode ler a conjectura lá em cima e deduzir, por causa do 3-mainfold, que a esfera que Poincaré estudou era a tridimensional. Isto é bastante lógico, mas é falso. Lembre que uma esfera é somente a _superfície_ da familiar forma geométrica. E, isto pode ser meio complicado de engolir; de certa forma, a superfície de uma esfera é bidimensional. Pense num cilindro. É fácil de imaginar que a lateral de um cilindro é bidimensional, pois nós podemos "abrir" o cilindro e esticar esta face numa folha retangular (e bidimensional). Apesar de que esta planificação não é possível para a superfície de uma esfera, a analogia permanece, e tiramos daí que uma esfera normal é na verdade uma 2-manifold. E daí a coisa começa a ficar um pouco mais feia, pois isto significa que a conjectura na verdade trata de esferas num espaço de 4 dimensões!

Agora que já temos um pouco de bagagem topológica, vamos tentar traduzir a conjectura de forma que possamos entender o que ela quer dizer:

Todo 3-manifold simplesmente conectado e fechado é homomórfico a uma 3-esfera.

Começando com os termos básicos: um manifold é a generalização de uma forma. Ou seja, uma rosquinha é um manifold, uma bola é outro manifold, uma fita de Möbius é outro manifold, assim como uma Garrafa de Klein e muitos outros. Ser simplesmente conectado significa que aquela condição de vizinhança que eu falei ali em cima, em um modo grosseiro, é válida para todos os pontos do manifold. Ou seja, que o manifold não tem furos. O conceito de fechado é um pouco mais complicado de explicar, e eu acho que a wikipedia faz um serviço melhor do que eu. Finalmente, ser homomórfico significa quase que "ser igual a". Lembre-se do exemplo da caneca e da rosquinha. Os dois são homomórficos. E uma 3-esfera, obviamente, é uma esfera em 4 dimensões.

Ou seja, o que a conjectura diz, no final das contas, é que qualquer forma em quatro dimensões "suficientemente" parecida com uma 3-esfera (por suficientemente parecida, devemos interpretar que satisfaça as condições de ser simplesmente conectada e de ser fechada) na verdade _é_ uma 3-esfera, do ponto de vista topológico.

Outra maneira de explicar é a seguinte: Imagine que nós peguemos um atilho de borracha (daqueles de se amarrar dinheiro), que _não_ tenha sido arrebentado (ou seja, que seja um anelzinho), e coloquemos ele sobre a "hipersuperfície" do 3-manifold (a hipersuperfície é a superfície do manifold; o nome diferente é por causa das 4 dimensões). Imagine também que este atilho é capaz de ficar cada vez menor, e menor, e menor, até que ele finalmente colapse em um ponto. Se conseguirmos fazer esta contração com o atilho, sem que ele nunca saia de cima da hipersuperfície, e de forma que em qualquer lugar do manifold que nós coloquemos o atilho, ele _sempre_ consiga se comprimir até um único ponto (sem sair da hipersuperfície do manifold, não esqueça), então este manifold vai ser homomórfico a uma 3-esfera. Se esta coisa de fechar um ponto do atilho parece trivial, tente dispor um atilho sobre uma rosquinha e imaginar ele se comprimindo a um só ponto sem soltar da superfície da rosquinha (é impossível :) ).


Bom. Considerando que até agora eu não falei nada sobre a _prova_ desta conjectura (imagino agora que ela possa ser chamada de teorema), eu acho que faz sentido prestar algum respeito ao trabalho maravilhoso de Grigori Perelman. Em 2003, ele publicou um rascunho da estratégia que ele pretendia utilizar para desenvolver a prova completa, e este trabalho passou por uma série de revisões e peer contact. Mas, depois de mostrar suas idéias 3 anos atrás, Perelman voltou para a Rússia, seu país de origem, e permaneceu sem dar notícias de lá. Agora (agora mesmo, o New York Times publicou isso hoje), seus trabalhos terminaram de ser revistos, e a prova foi apresentada por completo por matemáticos ao redor do mundo (isto é um procedimento de praxe, que nem um pouco retira crédito do trabalho de Perelman). Existem outras coisinhas interessantes sobre esta conjectura: 1.000.000 de coisinhas interessantes, para ser mais exato :). É que o Clay Mathematics Institute propôs este como um dos 7 problemas do milênio (e oferece 1 milhão de dólares a quem resolvê-los), os quais eu vou listar aqui, mas sem dar mais explicações:

P vs. NP
The Hodge Conjecture
The Poincaré Conjecture
The Rimeann Hypothesis (minha favorita :) )
Yang-Mills existence and mass gap
Navier-Stokes existence and smoothness
the Birch and Swinnerton-Dyer conjecture

todos os sites que eu passei são da wikipedia, bem interessantes, e eu achei isso originalmente no Slashdot (não kiko, eu _não_ tava olhando durante o trabalho. o Paulinho que me mandou o e-mail, e eu li _em casa_ :) )

Bom. Eu espero que quem ainda está vivo depois disso tudo goste um pouco mais de matemática, ou, na pior das hipóteses, não a odeie mais do que já odeia...:P

(o texto ficou grande, e se tiver faltado fontes pra alguma das coisas, me avisem que eu boto :) )
 

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